Choro - Parte 1
“- Foi um parto difícil – foi a primeira coisa que eu ouvi do doutro
depois de um trabalho de parto de 7 horas.
- E onde ele está doutor? – perguntei louca de vontade de ver meu
pequeno bebe, estava agarrada a mão do meu marido de ansiedade, quando percebi
a expressão pouco amistosa do médico.
- Então, não tem uma maneira fácil ou boa de dizer isso – nesse momento
toda ansiedade que eu tinha havia se tornado por um desejo mortal de não ouvir
o que o médico iria dizer a seguir. – O cordão umbilical estava enrolado na
garganta dele e enquanto ele saia, foi ficando cada vez mais apertado, tentamos
ressuscitar, mas já era tarde demais....eu sinto muito.”
- Esse foi o pior momento da minha
vida, o filho que eu carreguei em minha barriga, estava morto, nunca iria ver
seu rosto, nunca iria ouvir sua risada, sentir sua pele. É difícil até de
descrever isso novamente. Isso aconteceu por volta dos anos 2000, 6 meses depois
fui largada por um marido que havia se tornado alcoólatra e me traia com a
garota que deveria ser a baba para o bebe que nunca nasceu.
-Ok Sra. Somniure, acho que temos
o suficiente para registro – disse o homem de terno anotando tudo em um tablet – Em alguns instantes outro instrutor irá vir aqui para lhe detalhar como o
experimento deve proceder.
O homem de terno saiu da sala
aonde estávamos e eu fiquei lá sentada repensando se aquilo valia mesmo a pena.
Eu não tinha mais nada, meu emprego era uma merda, minha casa estava caindo aos
pedações e a família que um dia eu tive nunca mais se interessara por mim,
enquanto me perdia dentro desses pensamentos o outro agente entrou na sala, ele
estava com um jaleco branco, tinha cabelos curtos e um pouco grisalho dos
lados, usava um óculos com armação de tartaruga, seu jaleco estava meio
amarrotado como se tivesse sido colocado as pressas, ela segurava uma prancheta
digital na mão.
- Olá Sra. Somniure, eu sou o Dr.
Otávio – disse ele estendendo a mão para mim, ele parecia ser bem mais
simpático que o outro agente em questão – Se puder fazer o favor de me
acompanhar irei lhe explicar como tudo deverá ocorrer e lhe fornecer a
medicação necessária.
- Ok – respondia calmamente,
levantando da cadeira e o seguindo por um corredor muito iluminado até
chegarmos em algo que parecia ser uma sala de reuniões, ela tinha um projetor
que estava exibindo provavelmente uma apresentação, o Dr. Otavio me fez sentar
em uma das cadeiras da mesa e foi preparar algumas coisas em um computador.
Enquanto isso notei que havia um espelho que cobria quase toda uma parede,
pensei logo naquelas salas de interrogatório aonde colocam esses vidros
espelhados de um lado e transparentes de outro.
- Vou exibir um pequeno vídeo, ele
contem as informações básicas para o nosso projeto – disse ele terminando de
mexer no computador, me virei para a tela e então começou uma voz feminina.
“O Projeto A Tulpa, é um estudo aprofundado da mente humana, é uma
iniciativa dos Laboratórios Kutner em parceria com o Psicólogo alemão Henry
Lindner. O Projeto em si é simples, a cobaia em questão deverá imaginar alguém
com ela, alguma pessoa que não existe ou que ela já não vê a muito tempo. Estudos
mostram que caso a pessoa tenha um elo com quem ela irá imagina, torna o
experimento muito mais significativo.
Ele tem como base estudar e analisar a sua atividade mental durante o
experimento. Os medicamentos servem para deixar a mente mais vulnerável aos
efeitos do pensamento”
A tela se apagou e a sala ficou em
completa escuridão até o doutor acender as luzes e começar a falar comigo.
- Bom imagino que você deva estar
cheia de duvidas agora e eu estou aqui para sana-las então pode começar. –
Sinceramente aquilo tudo não me importava a mínima, mas havia algumas duvidas
básicas.
- Quais medicamentos vou ter que tomar e
quanto é o pagamento pelo experimento? – eram minhas únicas duvidas, o que havia
me levado até aquele laboratório era a oferta de dinheiro.
- Então você terá que tomar 3
dessas por dia – disse ele tirando um frasquinho e colocando sobre a mesa – Um de
manhã, um a tarde e um a noite e o pagamento será entregue na sua casa no
inicio de cada semana, 800 reais por semana devido ao seu caso em especifico.
Suas contas serão pagas pelo laboratório, até o fim do experimento você irá
residir em nossas instalações.
- Ok e quando eu começo?
- Hoje mesmo, vou acompanhar você
até seu quarto logo após assinar o contrato – ele me passou um outra prancheta
com alguns papeis e uma caneta – Pode assinar no final das folhas logo depois
de ler as mesmas.
- Ok, muito obrigado – peguei a
prancheta na mão e passei o olho por cima das folhas e assinando.
O quarto era como o resto da
instalação muito iluminado, toda mobília era branca, nada chamava muita
atenção, a não ser outro vidro espelhado enorme em uma das paredes. Me entregaram
um pulseira que iria medir todas as minhas informações vitais para garantir
minha segurança e minha primeira pílula. A decisão de quem viria a ser a minha
tulpa ainda me atormentava, mas eu sentia que precisava tentar superar isso.
A primeira coisa que reparei no
quarto depois que o doutor saiu foi o berço e todos aqueles brinquedos de
crianças espalhados em um canto da sala, tinha que iniciar logo o experimento,
por mais que fosse doloroso tentei imaginar meu pequeno bebe ali, brincando com
todos aqueles brinquedos. Enquanto tentava imaginar isso, sentia lágrimas
escorrendo pelo meu rosto e instantaneamente adentrei em um choro profundo,
tudo aquilo era doentio, mas eu havia aceitado participar por algum motivo que
ainda não entendia. Talvez minha vontade pela vida tenha diminuído, ou então eu
estivesse tão presa á memória de um filho que nunca tive que optei por fazer
tais coisas.
Fui me deitar na cama, fazia tempo
que não deitava em uma cama boa como aquelas, era aconchegante, por um instante
esqueci o que estava fazendo lá, mas fui levada a realidade por um boneco de
criança que estava deitado do meu lado na cama, assim que eu peguei uma voz
encheu a sala.
- O boneco foi deixado para que
fique mais fácil de você imaginar no princípio, conforme o tratamento for
avançando iremos retirar ele do quarto. Haverá mais alguns estímulos sensórias para
lhe ajudar nesse início, mas deixaremos que você note por conta.
Entendi nesse momento que eu não
teria mais a minha estimada privacidade, tentei então procurar por algum lugar
especifico para fazer minhas necessidades e achei uma porta, pelo menos isso eu
poderia fazer sem ter ninguém me observando toda hora. Assim que me levantei para
ir ao banheiro a voz falou novamente.
- É muito importante que você
mantenha o pensamento constante na pessoa, essa conexão não pode ser quebrada
por nenhum instante.
Isso vai ser complicado, foi o meu
primeiro pensamento. Tentei novamente recuperar aquele sentimento, aquela
saudade pelo meu filho, nesse momento escutei alguns barulhos de bebe e vi que
vinham do boneco. Fui até o outro lado da cama e peguei o boneco no colo, ele
era vazio, sem expressão, era difícil imaginar uma criança viva naquilo ali,
alguém que precisasse do meu amor, mais uma vez a voz encheu a sala.
- Dar um nome para seu “bebê” é
crucial no desenvolvimento da tulpa.
Estava começando a ficar com raiva
dessa voz que a cada 5 minutos me ordenava algo, mas ok, segui com experimento.
Charles era o nome que meu filho iria ter, Charles Somniure, até que combinava
um pouco e realmente deixava aquilo tudo mais palpável.
Levei o boneco até o berço, ele
continuava soltando alguns sons, e fui até a porta que deveria me levar até um
banheiro. Assim que entrei comecei escutar um som de choro, provavelmente
deveria estar vindo do boneco novamente, voltei até ele e peguei ele no colo,
mas aquilo continuava a soltar o som de choro e de repente comecei a sentir um
cheiro ruim. Nesse momento reparei que ele usava uma fralda, procurei um balcão
pelo quarto para que eu pudesse colocar o bebe me cima, até que localizei um
fraldário, não muito longe da área dos brinquedos. Fui até lá com o boneco,
coloquei ele em cima e tirei a fralda.
Embaixo haviam diversas gavetas e uma
delas estava cheia de fraldas, peguei uma e coloquei no boneco e o choro parou,
levei ele até o berço novamente. Quanto mais tempo que ficava segurando aquele
boneco, mais eu me lembrava do meu filho, era difícil segurar o choro.
Chegou a hora do segundo remédio e
logo depois que tomei bateram na porta.
- O Bebê está no berço? –
perguntou uma voz feminina.
- Sim, o boneco está dentro do
berço – respondi com uma voz meio amarga, depois disso ela entrou, tinha
cabelos morenos e era alta e magra, aquele estereótipo de filmes pornôs, aparentava
ser bem simpática e usava um jaleco branco que nem o do doutor porém menos
amassado. Ela trazia um prato generoso de comida e um tigela com uma colher
pequena.
-
Ele já tem um nome? – perguntou ela com uma voz delicada.
- Sim, Charles – respondi rispidamente,
não gostava da maneira como ela fingia que tudo era real tão facilmente.
- Ok, sua janta e a do Charles
estão aqui, amanhã de manhã voltarei para buscar os pratos e trazer o café, até
amanhã.– disse ela colocando a bandeja sobre um balcão e depois se virou para o
berço –Tchau tchau pequeninho.
Fui até o balcão, havia um prato
cheio de arroz, feijão bife e fritas, um copo de água do lado e uma pequena
tigela vazia com uma colherzinha. Peguei uma cadeira e comecei a comer, quando
ouvi o choro do boneco, me levantei fui até ele e o peguei no colo, voltei até
a cadeira peguei a colherzinha e comecei dar a comida imaginária para o boneco
imaginário enquanto intercalava com algumas garfadas no meu prato. Fazia tempo
que não comia uma refeição completa como aquela.
Terminei tudo e levei o bebe até o
berço e fui para minha cama, não consegui dormir direito naquela noite, tive
pesadelos a noite inteira com o parto, com as brigas que seguiram, meu marido
me abandonando, e no meio da noite comecei escutar o choro do boneco. Levantei
e fui até o berço, cada vez mais alto o som. Peguei no colo e comecei
cantarolar e o choro foi diminuindo, até que consegui colocar ele no berço e
voltar para a minha cama.
Acordei no outro dia e por um
instante esqueci o que estava fazendo lá, me distrai aproveitando o colchão até
que então duas batidas na porta me acordaram e acordaram o boneco também.
- Oh, desculpe Sra. Somniure, não pretendia
acordar o Charles, achei que já estivessem acordados – disse a mesma mulher que
veio trazer a janta – Estou com o café posso entrar?
- Sim – respondi me levantando da
cama e indo até o berço enquanto ela colocava o café no balcão e tirava os
talheres sujos. – Pronto, pronto.
- Sua dose para o remédio está
junto com a comida senhora, mais uma vez desculpe pelo incomodo – disse ela ao pé
da porta – Até mais tarde.
Fiquei com o bebe no colo por mais
um tempinho e fui ver o que ela havia trazido, frutas e um sanduíche para mim e
uma mamadeira para o bebê. Peguei a mamadeira e dei para o bebê antes de ir
tomar meu café, depois levei ele até o berço e fui comer minhas frutas. No meio
do caminho comecei escutar um barulho de tosse, voltei para o berço e vinha do
boneco mesmo, ele deveria estar se “engasgando” com o leite, peguei ele no
colo rapidamente e botei sua cabeça em
cima do meu ombro e comecei a dar tapinhas até que ouvi o som de um pequeno
arrotinho, me senti mais feliz por aquilo, e coloquei o boneco de volta.
Tomei meu comprimido e meu café e
voltei até o berço, peguei o bebê e fui até um pequeno sofá que tinha, liguei a
tv e botei em um desenho, fiquei lá a manhã inteira até a assistente voltar com
o almoço. O dia se passou normalmente depois disso, assisti mais um pouco de
tv, brinquei um pouco com o bebe, era estranho, mas eu acho que o remédio está
bloqueando a tristeza que eu deveria estar sentido, o remorso. Ao invés disso
eu sentia um apreço maior pelo bebezinho.
O resto dos dias se passaram no
mesmo estilo nada alterava muito, com o tempo eu comecei a ver mais vida
naquele simples boneco, era como se ele tivesse olhos, como se seus braços se
mexessem, não era mais um simples boneco, era um pequeno bebê, o meu pequeno
bebê.
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